(URBANO REIS)
Agora, no
fim da vida
Como mendigo
que sou,
Me sinto
preocupado,
Intrigado e
num momento
Me pergunto,
embaraçado,
Se faço ou
não testamento.
Não tendo,
como não tenho
E nunca tive
ninguém,
Pra quem é
que eu vou deixar
Tudo o que
eu tenho: os meus bens?
Pra quem é
que vou deixar,
Se fizer um
testamento,
Minhas
calças remendadas,
O meu céu,
minhas estrelas,
Que não me
canso de vê-las
Quando ao
relento deitado
Deixo o
olhar perdido,
Distante, no
firmamento?
Se eu fizer
um testamento
Pra quem é
que vou deixar
Minha camisa
rasgada,
As águas dos
rios, dos lagos,
Águas
correntes, paradas,
Onde às
vezes tomo banho?
Pra quem é
que vou deixar,
Se fizer um
testamento,
Vaga-lumes
que em rebanhos
Cercam meu
corpo de noite,
Quando o
verão é chegado?
Se eu fizer
um testamento
Pra quem vou
deixar,
Mendigo
assim como sou,
Todo o ouro
que me dá
O sol que vejo
nascer
Quando
acordo na alvorada?
O sol que
seca meu corpo
Que o
orvalho da madrugada
Com sua
carícia molhou?
Pra quem é
que vou deixar,
Se fizer um
testamento,
Os meus
bandos de pardais,
Que ao
entardecer, nas árvores,
Brincando de
esconde-esconde,
Procuram se
divertir?
Pra quem é
que eu vou deixar
Estas folhas
de jornais
Que uso para
me cobrir?
Se eu fizer
um testamento
Pra quem é
que eu vou deixar
Meu chapéu
todo amassado
Onde escuto
o tilintar
Das moedas
que me dão,
Os que têm a
alma boa,
Os que têm
bom coração?
E antes que
a vida me largue,
Pra quem é
que eu vou deixar
O grande
estoque que tenho
Das palavras
"Deus lhe pague"?
Pra quem é
que eu vou deixar,
Se fizer um
testamento,
Todas as
folhas de outono
Que trazidas
pelo vento
Vêm meus pés
atapetar?
Se eu fizer
um testamento
Pra quem é
que vou deixar
Minhas
sandálias furadas,
Que pisaram
mil caminhos,
Cheias dos
pós das estradas,
Estradas por
onde andei
Em andanças
vagabundas?
Pra quem é
que eu vou deixar
Minhas
saudades profundas
Dos sonhos
que não sonhei?
Pra quem eu
vou deixar,
Se fizer um
testamento,
Os bancos
dos meus jardins,
Onde durmo e
onde acordo
Entre rosas
e jasmins?
Pra quem é
que vou deixar,
Todos os
raios de luar
Que beijam
minhas mãos
Quando num
canto de rua
Eu as ergo
em oração?
Se eu fizer
um testamento
Pra quem é
que vou deixar
Meu cajado,
meu farnel,
e a marca
deste beijo
Que uma
criança deixou
Em meu rosto
perguntando
se eu era
Papai Noel?
Pra quem é
que eu vou deixar,
Se fizer um
testamento,
Este pedaço
de trapo
Que no lixo
eu encontrei
E que
transformei em lenço
Para enxugar
minhas lágrimas
quando fingi
que chorei?
Se eu fizer
um testamento
Testamento
não farei
Sem nenhum
papel passado,
Que papéis
eu não ligo,
Agora estou
resolvido:
O que tenho
deixarei,
Na situação
em que estou,
Pra qualquer
outro mendigo,
Rogando a
Deus que o faça,
Depois que
eu tiver morrido,
Ser tão
feliz quanto eu sou.